Na Lata

29 de setembro de 2011

O Na Lata publica, mensalmente, neste blog, uma entrevista ou um texto interessante – sempre inéditos – que aborda o universo das boas ideias, das melhores práticas e das pequenas e grandes soluções para as questões atuais que envolvem a relação da sociedade com o meio ambiente. Repensar, junto com vocês, será sempre a nossa proposta.

 

Estamira: mostrar a verdade e capturar a mentira 

A sociedade de consumo atual é marcada pelo excesso. O consumo excessivo gera um excesso de lixo e de resíduos que, por sua vez, geram inúmeros problemas que refletem a forma como a humanidade se organiza e se engana. Dentre esses problemas, a desigualdade social – que é profunda em países como o Brasil – expõe uma série de excessos e de condições extremas de vida. Podemos dizer que essa desigualdade cria realidades que colocam seres humanos na condição de “lixo”, no sentido extremo do desrespeito, do descaso e da negação de uma vida digna.

Marcos Prado, diretor e produtor de documentários importantes, como Ônibus 174 (2002), dirigiu o premiadíssimo filme documentário Estamira. Lançado em 2005,o filme apresenta ao público um pouco dessa realidade desconhecida de quem vive na borda do mundo, em meio ao lixo. Estamira, personagem principal do filme, é uma mulher que foi abusada sexualmente na infância, que foi levada à prostituição na adolescência, que tinha uma mãe que morreu no hospício, que se casou mais de uma vez – e foi traída inúmeras vezes -, que teve filhos e netos, que conheceu a violência em suas várias formas, que tinha amigos calorosos (e até pretendentes!) no aterro sanitário do Jardim Gramacho, que recebia a família nos fins de semana em seu barraco (família esta que lidava de uma maneira interessante com sua loucura, sem rejeitá-la) e que buscava remédios psiquiátricos em um centro de atenção psicossocial (onde estão os “copiadores de receitas semifabricadas”).

Convidamos um especialista em Saúde Mental e doutor em Ciências da Saúde para conversar com a gente e, a partir do documentário Estamira, tratar de questões que afetam o ser humano nos seus direitos básicos de dignidade e de sobrevivência no mundo contemporâneo. Com a palavra, o Dr. Musso Greco.

Estamira é uma personagem fascinante e uma pessoa com uma história de vida incrível. Como você poderia situar a loucura dela?

Musso Greco – Realmente Estamira é um personagem único! Exaltada e tensa, ela se apresenta como alguém cujo corpo sofre – o que ela atribui ao “controle remoto natural superior” – e que é perseguida pelos “espertos ao contrário”, que controlam o mundo e manipulam a realidade. Em razão disso, ela constrói uma visão de mundo contundente, singular e – por mais que possa parecer estranho, em se tratando de alguém tão enlouquecido – coerente, a ponto de merecer protagonizar um filme. Para os espectadores, as imagens do corpo maltratado e da voz inflamada de Estamira são brutas, ela é uma “estrela” de cinema pouco usual… Parece, como já disse alguém, uma atriz fugida de uma tragédia grega. E seu discurso é feroz, autorreferente, intenso demais. Aos poucos, entretanto, vamos nos inteirando de sua “religião” (uma briga constante com Deus e suas mentiras: “Trocadilo é Deus ao contrário!”), de sua missão no mundo (“mostrar a verdade e capturar a mentira”), e ela deixa de ser tão “estrangeira”, ela se revela mais parecida conosco do que imaginaríamos. Até mesmo as suas crenças, tão bizarras e inverossímeis, começam a parecer legítimas com qualquer sistema filosófico não erudito. Enfim, uma pessoa que, embora se afirme pela singularidade (“eu estou em um outro plano”), e se mantenha nessa terceira margem que é o Gramacho, também pode ser reconhecida como “uma de nós”, pelo lado negativo, ao encarnar emblematicamente a desigualdade social e a crueldade da sua condição.

 

Em que sentido podemos dizer que a situação de Estamira reflete a desigualdade em nossa sociedade atual: um modo perverso e excludente de organização social? Podemos estabelecer uma comparação e dizer que a grande massa de miseráveis que esta desigualdade produz é colocada na condição de “lixo”?

Musso Greco – Penso que a metáfora do “lixão” no filme serve para confirmar uma vocação perturbadora em Estamira, pois o espectador não sai ileso da viagem cinematográfica. Aquilo que é jogado fora aqui, na nossa casa, retorna do lugar do outro, lá na tela. O lixo, como diz Estamira, “às vezes é só resto, mas, às vezes, também vem descuido”. Assim também são tratadas as mulheres, as mulheres pobres e negras, e, principalmente, as mulheres pobres, negras e loucas (“doente mental é aquele que é imprestável”, diz Estamira).  É lá que ela está. No meio, na beira, em todo lugar (“eu sou a beira do mundo, estou em todo lugar”), porque é “abstrata”. Podíamos interpretar essa abstração de que fala Estamira como sua percepção inconsciente do que é ser nada, não ter registro no mundo, não ter concretude simbólica, restar largada na margem extrema do mundo (a miséria, o lixo ou a clausura de um hospício) como um objeto sem valor.

Há algo na fala delirante de Estamira que possa servir como denúncia social real?

Musso Greco – Não podemos desconhecer que é a radical alteridade de Estamira que faz com que ela não encontre ressonâncias com os outros, que não tenha aliados em sua missão, que não faça laço social a partir de seu delírio. Na sua revolta contra Deus e suas disputas com o misterioso “Trocadilo” (“canalha, traidor, estuprador”), entretanto, ecoam as rusgas metafísicas de filósofos e artistas ilustres, como Nietzsche, por exemplo, para quem “o mesmo homem que criou Deus, colocou-se no lugar dele, ou seja, no lugar do juízo”; ou como Artaud, que blasfema estamiricamente contra “o julgamento de Deus”. Minha compreensão é de que há uma revolta de Estamira contra um mal-entendido fundamental (um trocadilho) no fato de Deus não conhecer verdadeiramente o homem e enganá-lo: podemos ver aí uma espécie de denúncia de uma injustiça básica que ela toma para si, mas que é, pelo que sabemos de sua história de vida, referente a tudo que é descartado no mundo, a começar pelas pessoas “imprestáveis”. O delírio revela-se assim como uma tentativa espontânea de cura, de estabilização, e Estamira apela ao recurso de se produzir como aquilo que faltaria ao universo do discurso para reconstruir a realidade. Estamira está “no centro de tudo”, “além dos além”, “em todo lugar”, e ocupa o posto da “visão de cada um”, tornando-se uma entidade e assumindo uma missão. Não seria isso tudo exatamente uma luta por justiça ou, como ela diz em certa parte do filme, pela “igualdade de todos” ?

 

As necessidades básicas humanas – tanto as objetivas (alimentação, saúde, moradia, bens materiais, educação, etc.) quanto as de ordem subjetiva (desejo, ações, valores, modo de vida, liberdade, justiça, cultura, etc.) deveriam ser atendidas como direitos universais e inquestionáveis. No entanto, na história da humanidade, isso nunca foi uma realidade. Em que este filme contribui para a conquista dos direitos à cidadania?

Musso Greco – Contardo Caligaris, ao analisar o paradoxo da existência delirante de Estamira, disse que toda crença  − ele estava se referindo às nossas crenças “normais” − são delírios que tiveram sucesso e ganharam credibilidade por serem compartilhados pela maioria. O drama de Estamira (e de tantos outros ditos “loucos”) foi ter que inventar, sozinha, os meios de dar sentido à sua presença no mundo. Ela conseguiu essa façanha atribuindo-se o destino de ter de transmitir o que ela vê e revelar isso ao mundo. De certa forma, o diretor Marcos Prado realizou essa missão, ao propiciar a expressão de Estamira em um documentário que rodou o mundo. A metáfora da desigualdade social e da crueldade está ali, para impactar e fazer pensar. Estamira é o retrato da nossa culpa social, de nossos detritos, daquilo que nós queremos esconder no fim de mundo. Em seu transbordamento interior, ela encarna o desespero, e desamarra o espectador de si mesmo, naquilo que tem de confortável e conhecido, deslocando-o para fora de suas referências habituais. Isso instala uma escuta verdadeira, que pode, por pouco que seja, produzir interrogações sobre o que é apresentado. No meio dos restos de uma sociedade cada vez mais voraz, Estamira mostra o avesso das boas intenções e desmascara o que ela chama dos “espertos ao contrário”. O equívoco da ciência, o declínio do político, o engano da religião, o catastrófico das pequenas e grandes violências. Tal qual Marcos Prado, que deu uma casa de presente a Estamira após as filmagens, tenho notícia de certa mobilização após a exibição desse filme, no meio universitário, em ONGs que lutam pelos direitos humanos (principalmente dos portadores de sofrimento psíquico)… Isso pode produzir algum efeito em termos de mudanças políticas.

Ecologia humana é a ciência que estuda as trocas materiais e energéticas entre o ser humano e o seu ambiente. É o campo do conhecimento sobre o qual se constrói a ideia de sustentabilidade, considerando que a sobrevivência individual e do planeta dependem da construção de uma ética individual para desenvolver uma ética global. Há uma ética própria da loucura? Se há, ela pode influenciar os outros, os que não a entendem? Como fica a visão da loucura depois de ver esse filme?

Musso Greco – Caímos aqui em uma delicada questão política que o filme toca: ao mostrar a aparente ineficácia do seu tratamento na rede pública de Saúde e, embora, pelo que vemos, pareça haver uma rede de apoio (amigos, família) em torno de Estamira, perguntamo-nos sobre a visão social da loucura reforçada ou transformada pelo filme. Sabemos que a medicação e o suporte psicossocial têm mostrado relevância em muitos casos semelhantes, permitindo, à custa de um apaziguamento da atividade delirante, uma melhor inserção sociofamiliar. Pelo que vemos no documentário, o tratamento psiquiátrico parece ter pouca importância na vida de Estamira; ela tem pouco vínculo com o centro de atenção psicossocial ao qual está ligada; e ela não parece estar bem, sempre tão exaltada, sofrendo… Um técnico de Saúde Mental, para tratá-la de fato, teria que ocupar um lugar próximo ao que Marcos Prado encontrou, “secretariando-a” na construção de seu delírio… E a proposta de Estamira, sua “ética”, é muito radical: para as coisas “terem jeito”, a solução dela, no final do filme, seria a destruição de tudo e uma reconstrução do zero (“se tiver que me queimar para as pessoas terem lucidez, tudo bem”)…Não acho que a saída pela loucura seja solução para nada. O que fica para mim, após este filme, é uma pergunta: seremos capazes, em termos de política pública de assistência e como sistema de relações na cidade, de acolher as diferenças, e nos reconhecermos nesse outro insondável e refugado que habita a borda do mundo?

Musso Greco é psiquiatra, psicanalista, especialista em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (FUNED), mestre em Psicologia Social pela UFMG, doutor em Ciências da Saúde pela UFMG  e sócio-fundador da ONG Associação Imagem Comunitária (AIC); é coautor, entre outras publicações, de “Corpo, sintoma e psicose: leituras do contemporâneo” (Contra Capa Livraria, 2006).

Entrevista realizada por Élida Murta em 20 de setembro de 2011

Estamira: o filme e a realidade

O premiado filme, dirigido pelo diretor Marcos Prado e lançado em 2005, conta a história de Estamira: uma mulher de 63 anos que sofria de distúrbios mentais e que trabalhava há mais de vinte anos no aterro sanitário do Jardim Gramacho, um local renegado pela sociedade e que recebia diariamente mais de oito mil toneladas de lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro (RJ).

Seis anos depois, muito do que é denunciado no filme confirma uma realidade que ainda não mudou: Estamira morreu no dia 28 de julho de 2011, de infecção generalizada, aos 72 anos, por falta de atendimento médico no Hospital Miguel Couto, no Rio de Janeiro.

O próprio diretor Marcos Prado desabafou, em sua página do facebook, sobre a morte de Estamira:”Estamira ficou invisível pela falência e deficiência de nossas instituições públicas! Morreu depois de ficar dois dias esperando por atendimento nos corredores da morte do nosso maravilhoso serviço público de saúde do Miguel Couto. Ela estava com uma grave infecção no braço, mas foi tardiamente atendida. Obrigado, meus políticos de Brasília, do Rio de Janeiro, que roubam nosso dinheiro e enfiam sei lá onde”.

 

“O homem não pode ser incivilizado, todos os homens tem que ser iguais, tem que ser comunistas. Comunismo é igualidade. Não ‘é’ obrigado todos trabalharem em uma coisa só, nem comer uma coisa só, mais a igualidade é a ‘ordenança’ que deu quem revelou o homem como único condicional”. 

(Estamira) 

Confira no INdica as dicas de leitura e pesquisa do nosso entrevistado, Musso Greco.