10 de setembro de 2013
Na Lata é um espaço reservado, neste blog, para entrevistas e textos contemporâneos que abordem o universo das boas ideias, das melhores práticas e das pequenas e grandes questões que envolvem as relações da sociedade com o meio ambiente, com a cultura, com a política e com todos os movimentos capazes de transformar positivamente o mundo em que vivemos.
Repensar, junto com vocês, será sempre a nossa proposta.
O texto Os protestos de junho, a corrupção e a reforma política, do professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Newton Bignotto – que gentilmente aceitou o nosso convite – nos oferece uma reflexão sobre a relação entre a Reforma Política e a corrupção no Brasil contemporâneo.
Newton Bignotto
As grandes manifestações ocorridas em várias partes do Brasil no mês de junho pegaram de surpresa uma boa parte da população e dos analistas da política nacional. Originadas no movimento de luta pelo passe livre, em São Paulo, elas se alastraram rapidamente por várias capitais, atingindo proporções gigantescas em alguns locais. Desde então, multiplicaram-se as análises do fenômeno na tentativa de entender o que estava acontecendo e qual rumo as coisas tomariam. Na França, o jornal Libération chegou a perguntar se se tratava de uma revolução e se estaria acontecendo no Brasil algo semelhante ao que ocorrera, por exemplo, em países como a Tunísia e o Egito, na denominada “primavera árabe”. A manchete denotava desconhecimento da realidade política brasileira, em nada comparável àquela dos países mencionados, mas chamava a atenção para o fato de que algo parecia estar mudando na política brasileira e que essa mudança começara pelas ruas.
Quase tão intensa quanto os protestos foi a batalha por sua interpretação. Mesmo sem entender necessariamente os que estava ocorrendo, grupos políticos das mais variadas tendências procuraram não apenas compreender o acontecido mas se apropriar de seu significado aproximando-o de suas bandeiras históricas ou inventando uma nova bandeira. A análise de acontecimentos políticos, sobretudo daqueles de grande intensidade, quando realizada muito próxima deles, identifica-se muito mais com o terreno da opinião do que com aquele do saber. Não há nada de errado com isso, é mesmo algo natural, que constitui e sinaliza a existência de uma esfera pública viva e desejosa de mudanças. O que devemos observar, no entanto, é que as interpretações “a quente” de fenômenos políticos terminam por fazer parte do fenômeno elas mesmas, interferem em seu curso e, muitas vezes, têm baixo poder de explicação.
Alguns já começaram a chamar as manifestações ocorridas no Brasil de “jornadas de junho” numa alusão a grandes acontecimentos da história ocidental. A editora Boitempo, por exemplo, acaba de lançar um livro, Cidades rebeldes, que reúne uma série de artigos, nos quais aspectos variados são abordados por autores que, em sua maioria, partiram da ideia de que a variedade das reivindicações, e a multiplicidade dos atores presentes na cena pública, tornam difíceis as interpretações, embora muitos dos que escreveram tendem a enxergar um momento inovador da política brasileira, capaz de fazê-la se abrir para pautas que até então eram exclusivas de grupos militantes e mobilizados.
Sem descurar da importância das análises apresentadas, acreditamos que ainda é cedo para propor uma interpretação de conjunto das manifestações e mesmo de prever qual impacto terão na cena política brasileira. Isso ocorre não apenas pelo motivo levantado acima, mas, também, porque as reivindicações e os grupos envolvidos foram tão múltiplos e diferenciados, que é difícil encontrar uma síntese capaz de indicar a direção que será seguida pela política brasileira nos próximos meses.
Na verdadeira cacofonia das reivindicações que tomaram as ruas é possível, no entanto, identificar questões e temas que vieram para ficar, exatamente porque sua expressão nas ruas vinha acompanhada por uma longa maturação em fóruns menores, mas já organizados antes dos acontecimentos. A pauta mais evidente e talvez a mais aguda é sem dúvida aquela dos transportes públicos e de sua precariedade. Temas ligados à saúde e à educação também ganharam destaque, mesmo se muitas vezes guiados por corporações mais interessadas em seus benefícios do que no bem estar da população em geral.
Outro conjunto de temas estabelece a ponte entre a corrupção e a necessidade de uma reforma política para combatê-la. Esses são dois tópicos antigos do debate nacional, mas estão longe de ter produzido ações compatíveis com sua importância e com sua urgência. Em particular, eles parecem capazes de galvanizar os debates eleitorais, mas não de modificar o comportamento dos atores políticos institucionais. Assim, sem pretender hierarquizar as demandas e os temas debatidos, acreditamos que uma das heranças imediatas dos protestos de junho é o fato de que eles escancararam a necessidade de pensar de forma aprofundada as questões que nos angustiam. Essa urgência advém não apenas do fato de que os problemas são reais e importantes, mas porque abandoná-los para os que pensam em se servir deles para fins particulares pode produzir efeitos contrários aos que emergiram na cena pública brasileira. Pensar a corrupção como uma questão exclusivamente moral serve para ocultar seus mecanismos e para esvaziar sua dimensão política. Pensar a reforma política do ponto de vista dos mecanismos eleitorais serve para esconder o profundo mal-estar que domina parcelas da população quando se referem à maneira como a vida política brasileira é conduzida. Mais modestamente, portanto, acreditamos que ainda é cedo para as interpretações de conjunto do ocorrido, mas está no momento de aprofundar as reflexões e deixar de lado o terreno escorregadio das opiniões, para colocar em questão teorias e conceitos que até hoje balizaram os debates sobre temas que de forma mais ou menos intensa explodiram na cena pública brasileira. Essa tarefa longe de ser apenas o apanágio dos especialistas concerne o conjunto dos que se interessam pela vida política brasileira e desejam transformá-la. Enraizar os problemas na longa duração pode ser uma estratégia para abordá-los de maneira fecunda, reconhecendo ao mesmo tempo sua urgência e sua perenidade na vida política brasileira. A seguir apresentamos algumas reflexões sobre o problema da corrupção que foram feitas há alguns anos, quando o tema da reforma política estava em alta em nosso País. Acreditamos que elas guardam, ainda, sua pertinência exatamente porque pouca coisa mudou desde então.
Newton Bignotto
Quando se discute reforma política no Brasil, um dos obstáculos mais citados para o pleno desenvolvimento da vida democrática no país é a corrupção frequente dos agentes do Estado e os prejuízos causados pelo que muitos acreditam ser um fato generalizado na vida pública. Essa percepção do senso comum acompanha a maneira como alguns cientistas políticos definem o fenômeno da corrupção nas sociedades contemporâneas. Gianfranco Pasquino, no conhecido Dicionário de Política, editado, dentre outros, por Norberto Bobbio, afirma que corrupção “designa o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troco de recompensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura estatal”. Ao colocar assim o problema, o autor restringe seu alcance aos atores diretamente relacionados com a ação governamental e sugere que a corrupção é primariamente um ato ilegal, perpetrado por aqueles que deveriam zelar pelo bom funcionamento do aparelho estatal, notadamente os funcionários. O âmbito de ação dos corruptos é, pois, essencialmente o Estado.
A abordagem da questão tal apresentada mostra que o principal remédio para a corrupção deve ser de natureza legal, uma vez que ela é antes de tudo um ato de ilegalidade. Isso sugere que uma reforma política deveria se concentrar na modificação da legislação vigente, visando adequá-la ao caráter generalizado que o fenômeno parecer ter adquirido na sociedade brasileira. Ocorre que, se estudarmos o problema desse ponto de vista, será mister reconhecer que o aparato legal brasileiro, como o de muitas nações democráticas – está longe de ser omisso em relação aos funcionários que transgridem a lei. O código de conduta do funcionalismo, assim como a legislação brasileira em suas várias formas, prevê uma série de punições, que são aplicadas com maior ou menor sucesso pelas corregedorias públicas, assim como pela justiça comum. A reforma da legislação certamente pode torná-la mais eficiente diante dos muitos desmandos que dominam nossa vida pública.
O que se deve perguntar, entretanto, é se a análise por esse viés abarca todos os aspectos do problema, mesmo na forma como é percebido pelo senso comum. O mal-estar que domina muitos setores da sociedade brasileira, quando confrontados com a pergunta sobre o funcionamento do Estado, não parece se esgotar na queixa contra a ineficiência dos mecanismos legais em punir os transgressores. A corrupção é tida como um problema para a sociedade brasileira, em grande medida, porque é percebida como parte de nossa vida política em toda sua extensão e não apenas em uma de suas dimensões. Quando se fala da corrupção dos políticos, o fenômeno ganha uma amplitude que não está prevista na análise de muitos cientistas sociais. A restrição da questão, no entanto, como aquela operada por Pasquino, tem o mérito de apontar para soluções possíveis pelo uso de mecanismos tradicionais de controle das atividades do Estado, que se torna muito mais difícil quando tomamos a corrupção em sua acepção mais larga, que afeta a relação dos cidadãos de um Estado com a vida política em geral e não apenas com uma de suas instâncias mais facilmente identificáveis. No caso brasileiro, parece-nos, entretanto, que o conceito alargado de corrupção está mais próximo das preocupações dos cidadãos comuns do que a abordagem restritiva proposta por alguns cientistas sociais.
Historicamente o problema da corrupção faz parte do vocabulário da filosofia política desde a antiguidade. Platão abordou a questão no oitavo livro da República. Para o pensador grego, cada regime político corresponde a um tipo de homem. Assim, numa aristocracia, um determinado grupo social restrito ocupa o poder e governa segundo seus interesses e valores. Quando os filhos dos aristocratas perdem a capacidade de reproduzir o comportamento de seus pais, o regime se corrompe e se transforma em outra forma de governo. O importante nessa mudança de regime é que ela é inevitável aos olhos do filósofo e se tornava inexorável com o passar do tempo.
A herança platônica foi recebida por Aristóteles – que a ela dedicou páginas luminosas no quinto livro de sua Política – e, depois, foi popularizada pelo historiador grego Políbio, que viveu no segundo século de nossa era. Ele afirmava que os regimes mudavam segundo uma ordem pré-determinada e sempre num mesmo sentido. Dos melhores regimes passa-se para os piores até que é preciso regenerar inteiramente o corpo político. Para resistir a essas mudanças, é necessário misturar na constituição do regime elementos oriundos das três formas não degeneradas de governo: a realeza, a aristocracia e a democracia. Com isso pretende-se evitar que a simples passagem do tempo destrua o corpo político sem que os homens possam fazer algo para detê-la. No entanto, mesmo num regime misto, a corrupção é um fato inexorável, que pode ser retardado, mas não evitado para sempre. Para os antigos havia, portanto, uma relação direta entre o comportamento dos homens e a corrupção do corpo político, mas ela dizia respeito à essência dos regimes. O que se corrompia eram as formas políticas, mas a origem do processo estava nos homens, nos costumes degradados e na violação frequente da lei. Durante o Renascimento, os humanistas italianos, Maquiavel em particular, retomaram o problema e o estudo da corrupção, insistindo sobre o fato de que se os homens fracassam em defender os valores republicanos, a corrupção ganha terreno e destrói o corpo político.
Na modernidade Montesquieu abordou, no oitavo livro de seu Do espírito das leis, o tema da corrupção de uma maneira que lembra a dos antigos. Para ele : “A corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios”. Mas o que é um princípio? Para o pensador, princípio é o que faz um regime político agir, a seta que guia os homens em suas ações, quando devem fazer escolhas na cena pública. Numa república o princípio é sempre a virtude. Isso não significa dizer que num regime republicano – que para ele engloba as democracias – os homens ajam virtuosamente ou sejam sempre virtuosos. Montesquieu, no livro quarto do Do espírito das leis, afirma que: “Podemos definir esta virtude como o amor pelas leis e pela pátria. Este amor. Exigindo sempre a supremacia do interesse público sobre o interesse particular, produz todas as virtudes individuais; elas nada mais são do que esta supremacia”. Ao se corromper o princípio de uma república o que se constata é que os homens deixam de agir por amor à pátria, ou param de defender os interesses públicos acima de tudo, e passam a se guiar por outros ideais, que tanto podem ser os desejos individuais quanto a honra que move as monarquias.
No século XIX, essa maneira de abordar o problema da corrupção deixou de ser considerada e foi aos poucos perdendo terreno para análises mais próximas daquelas que dominam hoje as ciências sociais. Que sentido tem, então, recorrer ao passado? Certamente não podemos mais nos referir à corrupção como a um fenômeno natural, nem mesmo esperar da mistura de diversos modelos de governo a solução para as graves questões suscitadas pela corrupção dos agentes do Estado. O que cabe é reter a ideia de que ao se corromper o corpo político perde sua identidade e deixa de oferecer a seus membros a proteção de suas leis. Para manter viva essa herança devemos, pois, ver de que maneira a modernidade alterou nossa forma de pensar a natureza dos corpos políticos e sua forma de funcionar.
O primeiro passo para efetuar o vínculo entre a tradição e a modernidade é reconhecer que a identidade das nações contemporâneas é garantida por sua constituição –conjunto de leis fundamentais, que não pode ser modificado pelos governantes particulares – e não mais por princípios abstratos ou transcendentes. Embora possamos pensar a constituição de diversas maneiras, o que reúne as diversas concepções é a ideia de que os Estados modernos são estruturados em torno de leis fundamentais, que garantem seu funcionamento e limitam os poderes dos governantes. Tanto para aqueles que, como Rousseau ou Hegel, enxergam na constituição um organismo jurídico, que confere unidade ao Estado, quanto para os que, como Locke e Rawls, veem no aparato legal constitucional uma maneira de garantir os direitos individuais pela limitação dos poderes, a afirmação da identidade do Estado moderno por sua constituição parte do princípio da superioridade das leis sobre as vontades individuais. Nesse sentido, ao criar o mecanismo constitucional, seja pela preservação dos costumes e leis tradicionais (Burke), seja pela expressão escrita da vontade do povo (Thomas Paine, Rousseau), os cidadãos assumem que desejam viver segundo seus princípios e que estes não poderão ser destruídos sem que o Estado também o seja. Uma das consequências dessa maneira de abordar o problema da fundação das formas políticas é que não há Estado de direito e constituição sem que aja delimitação das fronteiras entre o domínio público e o domínio privado. Da mesma forma, nessa lógica, a constituição é o marco último para decidir da legalidade ou ilegalidade de uma ação.
Para pensar o problema da corrupção no Brasil é importante fugir de sua interpretação corriqueira para levar em conta as relações complexas, que se estabeleceram ao longo dos anos entre órgãos estatais e grupos privados. Dentre nós, a constituição nunca chegou a ocupar o lugar que tem na vida política de nações como os Estados Unidos. Embora tenhamos uma rica história constitucional, a separação entre o público e o privado nem sempre é percebida como um fato derivado das leis fundamentais e nela refletidos. De um lado, grupos ou partidos políticos que chegam ao poder costumam desconhecer o fato de que o aparato constitucional constitui um limite intransponível para suas ações. Agindo como grupo privado, vários atores políticos se comportam como se a vitória nas eleições significasse a posse da totalidade dos poderes do Estado. A confusão entre a esfera do governo e os domínios do Estado conduzem à crença de que a soberania popular, origem das leis em uma democracia, é apenas uma referência ideal, sem correspondência na realidade. Por outro lado, o próprio Estado parece reproduzir seus quadros, como mostrou Faoro, criando um grupo dirigente, que não reconhece limites para suas práticas, além daqueles inerentes às disputas políticas.
Olhando para esse quadro é possível concluir que, no Brasil, se a corrupção é em grande medida o efeito do comportamento ilegal de funcionários públicos, ela é um fenômeno que atinge setores muito mais amplos de nossa sociedade e ameaça romper o equilíbrio constitucional, atentando contra alguns de seus princípios fundamentais. Atacar o problema de frente implica retomar o debate sobre as definições entre o público e o privado e pensar numa reforma da legislação que contemple o conjunto das forças políticas e não apenas os agentes do Estado. Essa ampliação dos horizontes da análise ajuda a ver que a corrupção é um risco para os fundamentos da democracia. Ao preferir os interesses privados aos interesses públicos, mais do que transgredir a lei, atinge-se o núcleo mesmo do Estado: sua constituição. Uma reforma da legislação terá pois necessariamente que levar em conta a ameaça representada pelos corruptos e o fato de que a corrupção diz respeito à maneira como a sociedade como um todo lida com a coisa pública. O Estado de direito não sobrevive sem que todos os atores envolvidos no processo sejam responsabilizados e sem a afirmação da superioridade do bem público sobre o bem privado. É claro que os crimes cometidos por funcionários e cidadãos devem ser punidos segundo a legislação vigente. Mas, se quisermos levar em conta a natureza verdadeiramente política da corrupção, será preciso prestar atenção a seu nascedouro nas relações promíscuas entre os interesses de agentes particulares e as ações governamentais. Sem uma definição clara das fronteiras entre o público e o privado e a extensão da punição a todos os agentes corruptores, as diversas práticas ilegais, que caracterizam a corrupção no Brasil, serão um ameaça constante à manutenção do Estado de Direito. A ideia dos antigos de que a corrupção dos homens leva à destruição do corpo político serve, assim, como uma indicação dos riscos que corremos quando abandonamos o marco das leis fundamentais, para gerirmos a vida pública com a lógica imediata das disputas eleitorais.
Referências bibliográficas.
Newton Bignotto
Pós-doutor em Filosofia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
Pós-doutor em Filosofia pela Universite de Paris VII – Universite Denis Diderot.
Doutor em Filosofia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
Mestre em Filosofia pela UFMG
Graduado em Filosofia pela UFMG
Charge por Ivan Cabral, em 4 de julho de 2013. |