29 de fevereiro de 2016
O cenário da educação, no Brasil e no mundo, é diverso e é desigual. A educação é a base para a descoberta e o entendimento de um mundo cada vez mais complexo. Embora esse cenário atual – e não só na educação – não seja favorável para a maioria das crianças do planeta, felizmente encontramos pessoas e grupos – educadores sensíveis e atentos – que “estão corajosamente enfrentando os desafios de reinventar a educação infantil do nosso tempo”.
As crianças pequenas têm um mundo próprio e estão dando os primeiros passos na jornada da vida. Em favor do crescimento pleno dessas crianças, que têm um longo caminho a percorrer – na educação e na vida -, precisamos conhecer e valorizar o universo da infância. Contrariando modelos de educação que promovem o individualismo e transformam as escolas em espaços de “castigo”, é preciso investir na criação de espaços de liberdade, ampliando a prática da melhor coisa que existe e que as crianças sabem de cor: brincar!
E como brincar não tem fronteiras, vamos conhecer uma dessas pessoas que vêm abrindo espaços significativos para a alegria e a liberdade de brincar e de aprender brincando.
Ela é brasileira, mora em Nova York há 14 anos, e com o seu Let’s Playgroup vem chamando as crianças para brincar todos os dias. Sua casa se transforma diariamente em território livre, adaptado para receber crianças de idades variadas que, ali, podem conviver, descobrir, explorar, aprender, interagir e, principalmente, se sentem livres para brincar sem parar!
Meu nome é Alessandra Luiza de Morais Gabriel, mas ganhei de uma criança o apelido de Lelé e aí sou Lelé desde sempre. Vim para Nova York em 2002, para ficar por seis meses, e nunca mais voltei.
Quando cheguei a NY, eu encontrei um grupo de brasileiros e brasileiras, que tinham filhos pequenos, nascidos nos EUA, e que estavam preocupados com a prática da língua portuguesa. Assim, comecei a dar oficinas de brinquedo, conversando só em português e brincando as brincadeiras do Brasil. Depois, a mãe de uma das crianças me incentivou a trabalhar com crianças americanas também e eu formei um novo grupo. A partir daí, eu mudei a minha forma de trabalhar as oficinas. Até então eu brincava como brincava no Brasil e eu senti a necessidade de conhecer a cultura infantil americana também. As crianças eram muito pequenas e eu fui atrás de referências, canções e histórias americanas, pois era preciso uma adaptação àquela outra realidade infantil, e foi assim que surgiu o Playgroup.
O nosso Playgroup funciona na minha casa com crianças de várias nacionalidades, de 2 a 4 anos de idade, de segunda a sexta, e, às terças e quintas, estou trabalhando também, mais uma vez, com uma oficina só para crianças brasileiras.
A Filosofia do Let’s Playgroup
Ao brincar as crianças experimentam uma liberdade de ser, aqui e agora, em toda a sua totalidade. Ao brincar juntas, elas criam as próprias regras e aprendem a lidar com os próprios limites. O resultado desse encontro é o que eu chamo de cultura infantil.
Meu trabalho é baseado no desejo de que as crianças vivam essa cultura plenamente, na qual brincar é uma linguagem universal do conhecimento que inicia o ser humano em uma vida de liberdade, felicidade, unidade, equilíbrio, harmonia, humanidade e grandeza.
Espaço livre para brincar
A casa da Lelé é antiga, não é muito grande, mas tem um pequeno quintal, com árvores, jardim e laguinho. Embora tenha tentado, ela não conseguiu uma licença oficial para usar o local para trabalhar. Ela decidiu correr o risco – junto com os pais – em nome da liberdade que as crianças têm ali. A licença oficial implicaria muitas limitações e regras que são o oposto da liberdade que o Playgroup oferece. É um risco que tem valido a pena, não é, Lelé?.
A minha responsabilidade é gigantesca. Aqui tudo é muito contido, é um país controlado pelo medo o tempo todo. Tudo vale um processo. Mas o nosso espaço é aberto e eu explico para as crianças, na prática diária, quais são os limites e os perigos da casa. Eu explico bem, elas me entendem e, assim, nunca tivemos nenhum problema aqui, nenhuma criança saiu machucada. E já são 13 anos!
Aqui temos muitos brinquedos, mesinhas, cadeirinhas, gavetas cheias, tecidos, almofadas, e tudo pode sair do lugar e pode servir para construir as brincadeiras. À medida que eles vão crescendo, o corpo vai entrando na brincadeira, a criança vai dominando o espaço e explorando novos movimentos, vai descobrindo habilidades, vai aprendendo coisas novas na convivência com as outras crianças. Se a criança está em um espaço onde ela pode correr, pode pular, pode subir, ela vai saber se movimentar nele.
Eu trabalho também muito com histórias e música, especialmente com a música brasileira. Tem uma alegria na música brasileira que faz todo mundo dançar. A reação das crianças é sempre diferente. Eu adoro que elas cantem em português. Toda vez que eu canto ou conto uma história que eu digo que é brasileira e que é de quando eu era criança, existe um interesse maior. Elas ficam muito curiosas, querem ouvir e querem aprender.
Aprendi com a educadora Lydia Ortélio, nunca esqueci e confirmo isso o tempo inteiro: na brincadeira, primeiro vem o movimento, depois a melodia, e, por último, a palavra. Quando as crianças cantam uma música em uma língua que elas não entendem, certamente cada uma vai ouvir e entender de uma forma diferente. A palavra vai mudar, mas a melodia será a mesma.
A escola de hoje promove um massacre sobre a criança: pouco espaço, muita informação e muitas restrições. A hora e o lugar do recreio – quando o recreio existe – já virou outra coisa. O tempo do lanche é corrido, não existe espaço para brincar, e o individualismo e a inércia são estimulados e promovidos o tempo todo. As férias de julho duram só 15 dias! A realidade da escola mudou muito, o mundo é outro. Há um movimento contra o território da infância em curso. Na opinião da Lelé, tudo o que dá errado nos EUA e eles já não querem mais, o brasileiro copia. Acham que esse modelo de escola vai funcionar e não vai. Importaram até o bullying!
A gente cresceu numa época em que a gente ia pra escola de 7h às 12h ou de 13h às 17h. Aqui as crianças entram na escola às 8h e saem às 14h50. Ficam durante quase sete horas do dia num lugar onde o brincar muitas vezes não existe. Em um lugar onde não há muito espaço para “ser”, só para “aprender”. Criança brinca, não adianta. Ela sempre vai achar um jeito de brincar. Ela pode estar amarrada, pode estar presa, ela vai achar um jeito de brincar. É da natureza da criança querer brincar. Agora, a questão é a qualidade desse brincar, o que esse brincar vai significar na vida dela, em termos de desenvolvimento e crescimento. Aí é que são elas! Eu acho que uma criança livre, que vive no interior, por exemplo, e que está livre para brincar e escolher o que quer fazer, ela entende que é responsável por ela mesma. Vai aprender desde cedo a fazer suas escolhas, e a saber que toda escolha tem uma consequência. No momento que sai pela porta de casa e que a mãe não sabe mais onde ela está, a criança torna-se responsável por ela mesma. Eu cresci assim. Eu sei da força que existe e do poder dessa força quando nos é dada a chance de ser livre.
Aqui em Nova York tem um monitoramento que acontece o tempo inteiro. O pai e a mãe ficam em cima da criança. Eu observo muito isso aqui. Você sai para dar um volta no Parque – Lelé mora perto do Prospect Park, no Brooklyn – e passa na frente do playground. O que você vê? Um espaço cercado, lotado de crianças que estão “se matando” para usar um brinquedo, ou estão correndo, batendo, jogando areia umas nas outras. E as mães e as baby sitters lá, no celular ou conversando umas com as outras. Por que levam para o playground? Porque ali está tudo pronto, cercado, trancado, seguro. Mas qual é o sentido de ter um playground cercado dentro de um parque? Do lado de fora tem um gramado enorme e muitas árvores. Se os pais levam os meninos para o parque, para o espaço aberto, é claro que a primeira coisa que eles fazem é correr! Mas não quero, aqui, diminuir a importância dos playgrounds nos espaços urbanos. Seja no parque, nas praças, o que vemos muitas vezes são pais cansados e sem energia para brincar com essas crianças. E não tem que ser assim. As crianças não precisam de tanta restrição. Precisam de companhia e espaço livre para brincar.
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Criança é “sobre si”
Como você vê a importância do seu trabalho com essas crianças, como isso vai refletir na vida delas, no seu desenvolvimento? Elas crescem, vão pra escola e muda tudo. Qual é a influência que isso vai ter no futuro? Qual é a sua contribuição para a vida dessas crianças que passam pelo Playgroup?
A criança, quando ela brinca, quando está concentrada e completamente entregue à brincadeira, existe uma conexão e uma descoberta absoluta do ser. Acho que dar a chance para uma criança brincar livre é dar a chance de ela saber quem ela é. Não é ninguém falando quem ela é ou o que vai ser, ela sabe quem ela é. Se ela não tem essa chance desde quando nasce, quando é que a criança vai ser livre? A hora de saber quem a gente é acontece justamente quando brincamos. A gente, que brincou muito, toda vez que a gente para e lembra do que fez e brincou, não existe uma palavra que vá descrever aquele sentimento, mas existe um sentimento de conexão, de um todo. É uma coisa só, não tem partes divididas, sabe, a cabeça imaginou isso, meu corpo fez aquilo. Não! É uma coisa inteira, né? Eu tenho lembranças de sensações de brincar, por exemplo, de quando eu descia na pirambeira em um carrinho de rolimã. Carrinho que a gente construía! O sentimento daquilo, de você pegar do nada e construir uma coisa, junto com seus amigos, de escolher quem vai na frente. Cada hora era um que guiava o carrinho, e a gente descia morro abaixo. Essa sensação não tem preço! É um autodomínio, você pode ser, você é “sobre si”. Um menino, lá na Bahia, o Marivaldo, foi quem me disse isso: que ele era “sobre si”. O que ele queria dizer com isso? Que ele sabia exatamente o que queria, que ele era responsável, era inteiro no que ele fazia.
É preciso deixar os meninos serem “sobre si”. Acho que esse é o grande valor do brinquedo, do brincar. No brinquedo os meninos são. Qualquer um é, não é só criança. É ali que você está em conexão plena. E, se for na natureza, então é melhor ainda!
É preciso preservar um tempo para brincar, é a hora de não fazer nada. É nessas horas que muita coisa boa pode acontecer.
A criança fica o dia inteiro na escola, naquele stress de horários e restrições, e, quando chega em casa, vai fazer o quê? Vai fazer o dever de casa. Então, que horas que você vai fazer nada? Tem que ter uma hora para não fazer nada. E é na hora de não fazer nada que uma série de coisas incríveis acontece. Mesmo aqui, tem dia que elas não querem fazer nada. Deitam ali no colchãozinho vermelho, entram debaixo da mesa ou sentam na cadeirinha de balanço e ficam lá, quietinhos. Aí eu chego e pergunto: do que você está brincando? De nada! Ah! Então tá! Dali a pouco, as outras crianças querem saber por que ele está ali e todas entram debaixo da mesa e, aí, o ‘não fazer nada’ vira uma nova brincadeira!
Às vezes a gente tem a ansiedade de ocupar a criança. A criança não tá fazendo nada e a gente quer que ela faça alguma coisa. Na verdade, um ‘não fazer nada’ é um ‘pré-fazer tudo’! Se você fica ocupado o tempo todo, não sobra espaço para surgir uma coisa melhor. A criança, quando não está sendo monitorada, não faz nada que não seja da vontade dela. E tudo o que ela faz é muito verdadeiro, muito genuíno.
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Hoje estamos só andando para trás, existe um movimento contrário – especialmente nas escolas – sobre o que deve ser o espaço apropriado para a criança. Existe a questão do medo, da violência…
Existe uma violência hoje em dia maior? Existe. Mas acho que o medo é maior do que a violência que existe na rua. Eu acredito que um movimento contrário ao medo ajudaria nessa questão. Temos que ocupar melhor os espaços da cidade, ir mais aos parques, às praças e criar um senso maior de comunidade. Assim, ocupando a cidade e em comunidade, a gente aos poucos vai diminuindo o espaço da violência. Na periferia, onde a violência é maior, as crianças estão todas na rua!
Criança gosta sempre de estar junto, gosta desse encontro. Uma coisa é o que o adulto acha que é bom pra criança e, a outra, é o que um adulto que observa bem a criança sabe que é bom. Porque muita coisa que dizem que é bom pra criança não é. Tem mais a ver com o que o adulto deseja para a criança ou para si do que realmente é bom pra ela. Por exemplo, todas essas atividades guiadas pra preencher o tempo da criança, usando o “brincar”, o “brinquedo” como isca.
O brinquedo e o brincar não têm que ter um propósito. Se existe essa ideia de que o brinquedo tem que chegar a algum lugar, tem que ter um objetivo, já não é brincar, é outra coisa. E as escolas usam o brinquedo nesse sentido. Fingem que estão brincando, mas não estão! Porque brincar é um movimento livre, espontâneo, que vai acontecendo e que não tem que chegar a lugar nenhum.
Lúdico é primo-irmão de pedagógico…
Muitas vezes me perguntam: qual é a sua linha pedagógica? A minha “linha pedagógica” é a intuição. É olhar para a criança e ver o que ela quer, o que ela precisa pra fazer o que ela quer. É uma conexão que você cria com as crianças e que te permite entender o que está sendo pedido ali, o que pode acontecer ali. Não tem linha nenhuma. É brincar. É só brincar. Eu não ensino nada. Eu brinco junto!
Lelé
Lelé durante a entrevista realizada, pelo Skype, por Élida Murta. |
Lelé (Alessandra Luiza de Morais Gabriel) nasceu em Belo Horizonte (MG). Formada em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, sua experiência com crianças começou quando ela ainda era estudante e se encantou com o universo da cultura infantil. Decidiu se dedicar a pesquisar e a fazer valer o que as crianças, brincando, naturalmente já sabem. Vem aprendendo diariamente com elas. Em 2002, mudou-se para NY e abriu playgroups em Manhattan e em Park Slope. Desde 2004 vem aprimorando o seu aprendizado de brincar com as crianças no espaço livre do seu Let’s Playgroup.
Élida Murta é jornalista e colaboradora deste blog há 5 anos.